Topo

Física na Veia

A gravidade é zero no espaço? Quanto vale a gravidade na ISS?

Prof. Dulcidio Braz Júnior

11/06/2020 14h53


(Fonte: CSA)

No post anterior, em que calculo a velocidade orbital da ISS – International Space Station, um internauta comentou "A gravidade da ISS em relação à terra está errada."

Achei estranho porque em nenhum momento calculei ou usei o valor da gravidade (ou campo gravitacional g) lá na ISS. O que fiz foi equacionar a força de atração gravitacional entre a Terra e a estação espacial para, a partir da ideia de força resultante centrípeta, descobrir com que velocidade a ISS ou qualquer outra nave e até mesmo um satélite, independentemente da sua massa, tem que ter para orbitar a Terra a cerca de 400 km de altitude. E chegamos ao valor de quase 28 mil km/h, uma velocidade grande para os padrões humanos.

Mas foi legal o comentário porque instigou-me a querer fazer este cálculo num post, algo que eu já fiz no Física na Veia mas na plataforma antiga do blog que envelheceu tecnicamente e, por isso, foi descontinuada pelo UOL. Bom momento para recuperar a ideia "perdida" num texto que, pelo destino tecnológico, acabou ficando fora do ar!

É isso o que farei hoje, portanto. Vou mostrar como calcular a gravidade (a rigor, módulo do campo gravitacional) em torno de qualquer astro. E com a expressão que vou encontrar poderemos calcular quanto vale a gravidade lá na ISS, a 400 km de altitude. Você vai ver que o fato dos astronautas "flutuarem" dentro da estação espacial, como no curioso vídeo acima em que Chris Hadfield escova os dentes a bordo da estação espacial, nada tem a ver com "gravidade zero". Lá, a gravidade está bem longe de ser nula!

Vem comigo?

O campo gravitacional

Dizemos que ao redor de qualquer corpo dotado de massa M, outro corpo também dotado de massa m sofrerá uma força de atração gravitacional  FG do primeiro¹. E esta força é dada pela Lei da Gravitação Universal de Isaac Newton (1643-1727) declarada logo abaixo.

Em Física, de forma mais técnica, dizemos que ao redor do corpo de massa M existe um campo de forças gravitacionais g que é gerado por M e, portanto, independe de m. Este campo permeia todo o espaço ao redor do corpo de massa M. Mesmo quando m não está por ali, o campo se faz presente por conta da massa M que o gera. Desta forma, uma vez dentro deste campo, qualquer outro corpo de massa m será gravitacionalmente atraído por M. A figura abaixo ilustra esta ideia. Note que M e m não precisam estar em contato físico para que a atração ocorra. Sempre que temos forças que atuam à distância, sem contato, pensamos fisicamente num campo de forças.

A Terra (ou qualquer astro esférico) de massa M atrai um outro corpo de massa m que está numa distância r = R + h. O corpo de massa m pode ser a ISS ou qualquer outro objeto orbitando o nosso planeta, incluindo um satélite artificial ou a Lua, nosso satélite natural.

A força gravitacional FG pode ser chamada de força peso P. Abaixo você confere a definição de força peso.

Como FG e P representam a mesma força de atração gravitacional, apenas escritas de formas diferentes nas expressões logo acima, podemos igualar as duas. E, na expressão que obteremos, podemos isolar o módulo do campo |g| em função das outras grandezas físicas relevantes ao problema. Desta forma, teremos uma "fórmula" pronta para calcular o módulo do campo gravitacional do astro, o que chamarei simplesmente de gravidade e, didaticamente, representarei a partir de agora por gh uma vez que estamos pensando no valor de g num ponto qualquer ao redor de M e a uma altitude h. Veja:

Note que, sem muito esforço, deduzimos uma "fórmula" ( a rigor uma expressão matemática) para calcular a gravidade na altitude h a partir da superfície da Terra ou qualquer astro ou, se preferir, a uma distância r = R + h do centro da Terra ou astro esférico de raio R. Na prática, o astro de massa M que está gerando o campo gravitacional nem precisa ser esférico se pensarmos que na expressão do campo gravitacional a distância r é medida do centro do corpo de massa M até o centro do corpo de massa m. Mas, imaginando um astro central esférico de raio R, podemos reescrever a expressão acima trocando r por R + h. Confira logo abaixo.

Na superfície da Terra ou de qualquer astro, para a altitude h = 0, o que na Terra podemos chamar de nível do mar, teremos r = R + 0 = R. E encontramos uma outra expressão que nos dá a gravidade superficial da Terra ou de qualquer outro astro, grandeza física que doravante chamarei de gpois h = 0. Confira a expressão particular do campo gravitacional superficial, ou seja, para h = 0.

Usando a expressão de gacima, sabendo que a massa da Terra mede aproximadamente M = 6.1024 kg, que seu raio também aproximado vale R = 6400 km = 6,4.103 km = 6,4.106 m e que a contante gravitacional aproximada mede G = 6,7.10-11 N.m²/kg², podemos, sem muito esforço, obter o valor da gravidade superficial gda Terra:

E, como não poderia ser diferente, encontramos o tão esperado valor g= 9,8 m/s² para a gravidade na superfície do nosso planeta, valor com o qual estamos acostumados e que muitas vezes, por simplificação, aproximamos para 10 m/s². 


DICA IMPORTANTE: com a expressão de gobtida e usada acima você pode encontrar o valor da gravidade superficial em qualquer planeta ou astro. Basta pesquisar (no Google, por exemplo), o valor do raio R e da massa M do objeto. A constante universal da gravitação G você pode sempre usar G = 6,7.10-11 N.m²/kg². E é só substituir na expressão de ge mandar ver! Experimente! Marte, Júpiter, Lua, são alguns dos exemplos de astros cuja gravidade superficial você pode estimar. 


Agora só falta calcular o gpara a altitude h = 400 km, altitude aproximada da ISS, e cumprir a missão do post de hoje. Teremos o valor da gravidade gerada pela Terra lá no espaço, a 400 km acima da superfície, onde está a estação espacial. Para tal usaremos a expressão de gh obtida logo acima para a distância Terra-ISS, centro a centro, valendo r = R + h = 6400 km + 400 km= 6800 km = 6,8.103 km = 6,8.106 m. Veja o cálculo logo abaixo:

Descobrimos que a gravidade terrestre lá na ISS mede g= 8,7 m/s², ou seja, muito longe de ser nula. Acima de 100 km já podemos considerar que é espaço. Logo, no espaço, e na ISS, tem gravidade sim! Esse papo de gravidade zero no espaço é a maior roubada científica!

Note que, pela expressão de gh obtida, seu valor decresce com o quadrado da distância ao centro do astro. Em outras palavras, é inversamente proporcional a r². Assim, se você se afasta do astro e dobra a distância até ele, a gravidade do astro enfraquece e cai para 1/2² = 1/4. Se triplica a distância ao centro do astro, a gravidade fica ainda menor e cai para 1/3² = 1/9. Se quadruplica esta distância, a gravidade cai ainda mais e enfraquece para 1/4² = 1/16. E assim por diante. Deu para entender?

A rigor, o campo gravitacional ou gravidade de qualquer astro será nulo apenas quando a distância r ao centro do astro tender para infinito. Assim, r² tenderá para infinito e estaremos dividindo GM por infinito, o que vai para zero. É claro que a a partir de uma determinada distância r o campo gravitacional será tão fraco que detectá-lo será bem complicado. Podemos até dizer que neste caso ele é desprezível e, portanto, nulo por aproximação. Mas, a rigor, um campo gravitacional só é de fato nulo a uma distância infinita do corpo que o gera.

Por que razão os astronautas "flutuam" na ISS se a gravidade lá no espaço não é nula?

Astronautas Chris Cassidy e Andrew Morgan "sentados" no ar, "flutuando" na ISS durante uma operação de manutenção. (crédito: NASA)

Se estivermos dentro de um elevador e o cabo arrebentar, o que espero nunca nos aconteça, durante a queda da cabine do elevador teremos a sensação de estarmos sem peso porque tanto nossos corpos quanto o elevador estarão caindo com a mesma aceleração a = g0 = 9,8 m/s², valor típico daqui da Terra e que calculamos acima. Se você, por exemplo,  estiver segurando um objeto e soltá-lo dentro do elevador em queda, ele (objeto) continuará caindo com a mesma aceleração de 9,8 m/s². Para você o objeto estará parado e "flutuando" a sua frente, embora esteja caindo junto com você e com o elevador, todos "ganhando" velocidade à taxa de 9,8 m/s², o u seja, 9,8 m/s a cada s.

Na ISS é praticamente a mesma coisa porque uma órbita nada mais é do que uma queda infinita. Não entendeu? Explico. Observe a ilustração abaixo onde podemos ver (propositalmente fora de escala) a ISS orbitando² a Terra.

ISS orbitando a Terra (propositalmente fora de escala).

Imagine que, enquanto a ISS orbita a Terra, entre duas posições sucessivas P1 e P2, ela sempre cai uma quantidade Δh, mas acompanha a curvatura da Terra. Desta forma, a ISS cai continuamente mas nunca se aproxima nem se afasta da superfície do planeta. Neste sentido é que digo tratar-se de uma queda infinita, ou seja, uma queda que nunca se concretiza. Esta ideia belíssima não é minha, infelizmente. Dou os devidos créditos: é de Sir I. Newton!

Uma órbita é uma queda livre infinita (I. Newton)

Newton afirmava que, se você atirasse horizontalmente com um canhão do alto de uma montanha e com velocidades iniciais do projétil cada vez maiores, o projétil cairia cada vez mais longe do ponto de lançamento. Deveria, portanto, existir um valor de velocidade tal que o projétil não mais cairia mas orbitaria a Terra. Este experimento mental de Newton é conhecido na literatura científica como Newton's Cannon (ou Canhão de Newton). A ilustração abaixo, obtida por este aplicativo online (experimente-o e divirta-se escolhendo a velocidade inicial do tiro do canhão em m/s!), ilustra a ideia de múltiplas trajetórias do projétil atirado horizontalmente do topo de uma montanha.

Print da tela de um aplicativo que simula o Canhão de Newton. (Fonte)

Neste outro link você encontra uma versão visualmente mais moderna e até mais completa do Newton's Cannon. Se pesquisar no Google, vai encontrar inúmeras outras versões. Gosto deste simulador do qual publiquei print porque ele mostra a figura original como apresentada no trabalho de Newton.

Mas devo destacar que há uma sutil diferença entre um elevador caindo próximo da Terra e a ISS em sua infinita queda. Lá na altitude h = 400 km, onde está a ISS, a queda não se dá a 9,8 m/s² mas a 8,7 m/s², como calculamos acima. Mas é uma queda, e exatamente ao sabor da gravidade. E, por isso mesmo, a sensação de estar em órbita é a mesma de estar sem gravidade e "flutuando", sensação análoga àquela de estar dentro de um elevador em queda livre.

A Nasa chamava esta situação de gravidade zero. E isso gerava muita confusão na cabeça das pessoas que levavam a ideia ao pé da letra, acreditando que a gravidade no espaço era, de fato, nula. Recentemente vem chamando de microgravidade, o que também não explica muita coisa mas avisa que os astronautas têm a sensação de uma gravidade bem fraquinha, "micro", quase nula. Mas é apenas e tão somente uma sensação, efeito colateral da queda infinita.

O nome correto desta situação é imponderabilidade. Um palavrão para dizer que, se houvesse uma balança dentro do elevador caindo ou da ISS orbitando a Terra com um corpo sobre o seu prato, como tanto balança quanto corpo estariam em queda e com a mesma aceleração a= g naquele local, a balança indicaria zero. Neste caso seria impossível ponderar (medir) a massa do corpo usando a balança, daí o termo imponderabilidade.

O nome científico para a sensação de gravidade zero é imponderabilidade!

Abraço do prof. Dulcidio! E Física na veia!

 


¹ Na verdade, haverá atração mútua entre os corpos uma vez que, pela Terceira Lei de Newton, se um corpo A atrai outro corpo B, B também atrai A com uma força de mesma natureza, com a mesma intensidade, na mesma direção, mas em sentidos opostos.
² Há aqui duas observações a fazermos: (A) Na ilustração a ISS parece orbitar a Terra num plano que contém os pólos terrestres. Mas é apenas suma representação da ideia. A órbita da ISS é inclinada cerca de 51,6 graus em relação ao equador terrestre e ela não passa sobre os pólos da Terra; (B) A ISS tem mais ou menos o tamanho de uma campo de futebol (contando os painéis solares). Logo, na escala da ilustração seria apenas um pontinho de tamanho desprezível.
Errata: A unidade de G, digitada errada inicialmente como kg.m²/kg², foi corrigida para N.m²/kg² , a forma correta e exatamente como consta no post anterior. 

Já publicado no Física na veia! 

Sobre o autor

Dulcidio Braz Jr é físico pelo IFGW/Unicamp onde atuou como estudante e pesquisador no DEQ – Departamento de Eletrônica Quântica no final dos anos 80. Mas foi só começar a lecionar física para perceber que seu caminho era o da educação. Atualmente, além de professor, é autor de material didático pelo Sistema Anglo de Ensino / Somos Educação e pela Editora Companhia da Escola. É pioneiro no Brasil no ensino de Relatividade, Quântica e Cosmologia para jovens estudantes do final do ensino médio e início do curso superior. E faz questão de dizer que, aqui no blog, é professor/aluno em tempo integral pois, enquanto ensina, também aprende.

Sobre o blog

"O Física na Veia! nasceu em 2004 para provar que a física não é um “bicho papão”. Muita gente adora física. Só que ainda não sabe disso porque trocou o conteúdo pelo medo. Se começar a entender, vai gostar. E concordar: a Física é pop! Pelo seu trabalho de divulgação científica, especialmente em física e astronomia, sempre tentando deixar assuntos árduos mais leves sem jamais perder o rigor conceitual, o Física na Veia! foi eleito por um júri internacional como o melhor weblog do mundo em língua portuguesa 2009/2010 pelo The BOBs – The Best of Blogs da alemã Deutsche Welle."