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Física na Veia

Recorde mundial de 'looping' com um carro

Prof. Dulcidio Braz Júnior

23/10/2015 21h47

 

Uma ação de marqueting animal foi usada pela Jaguar para divulgar o F-Pace, seu primeiro SUV lançado no Salão do Automóvel de Frankfurt, Alemanha, em meados de setembro desse ano.

Toda a ação é mostrada no vídeo acima no qual você pode conferir o piloto e dublê  Terry Grant conduzindo com frieza e precisão o F-Pace num incrível looping vertical de 360 graus numa pista especialmente montada para o evento com 19,08 m de altura, algo como um prédio de 5 andares. Segundo o que foi oficialmente divulgado, o piloto ficou sujeito a uma "força 6,5G". E o Guinness Book confirmou a quebra do recorde mundial de looping com automóvel.

O UOL Carros fez matéria na ocasião e, desde então, fiquei com muita vontade de escrever sobre a Física por trás dessa façanha. Só me faltava tempo. Vida de professor… sabe como é?

Garimpei um tempinho só agora e, mais uma vez tento provar que Física tem a ver com tudo!

 

Para começar, o que é "Força G"?

A rigor, não existe uma "força G". Dizemos que há força quando um corpo exerce uma ação de puxar ou empurrar outro corpo. Logo, para haver força, devem existir dois corpos: um que faz e outro que recebe a força.

No caso da "força G", não existe nenhum corpo fazendo a força, embora pareça que um outro corpo a sofra. A "força G" é uma sensação de força mas não exatamente uma força no sentido físico real do termo. Ela surge por conta da inércia dos corpos. E certamente você já sentiu a inércia do seu próprio corpo quando, viajando de carro, fez uma curva. Garanto que você se sentiu "jogado" para fora da curva, não é mesmo? Numa curva, chegamos a inclinar o corpo em sentido oposto ao centro. E o efeito é potencializado se a velocidade do carro for alta e/ou a curva for fechada (de raio de curvatura pequeno). Tratei desse assunto nesse post, ainda na plataforma antiga do blog.

Mas acredite: numa curva, de fato, ninguém empurra o seu corpo para fora. Logo, sendo fisicamente rigoroso, não há uma força centrífuga empurrando o seu corpo na direção radial e em sentido oposto ao do centro de curvatura. É que, por inércia, você tem a tendência de continuar o movimento pela tangente à trajetória curva. Mas forças por você trocadas com o carro, por sorte, não deixam que isso aconteça. Solidário ao veículo, você completa a curva junto com ele. Essas forças que atuam sobre o seu corpo compõem o que chamamos em Física de resultante centrípeta (e não centrífuga!).

Assim, de fato, você é puxado durante a curva. Mas o puxão é radial e para o centro da curva e não para fora dela! Só que no referencial do automóvel você se sente "jogado" para fora da curva. Percebe a sutileza da situação? Nesse caso, como o automóvel está acelerado e as Leis de Newton só funcionam bem para referenciais inerciais, ou seja, sem aceleração, é muito comum que se façam confusões entre força resultante centrípeta e centrífuga se adotarmos o carro como referência. Toda a análise que farei logo a seguir vai tomar o chão (ou a Terra) como referencial, garantindo a validade das Leis de Newton, ok?

Mas para o piloto, que não é físico e não está muito preocupado com o rigor científico, a sensação de força é tão grande que ele acredita na "força G" e, muitas vezes, chega a falar dela em entrevistas, por exemplo. O piloto sente tudo de dentro do carro, no referencial não inercial.

Pergunte, por exemplo, para o Terry Grant, o piloto que conduziu o F-Pace na incrível manobra mostrada no vídeo, "o que você sentiu durante o looping?". Aposto que ele dirá que sentiu-se "mais pesado". Para ele, a sensação é bastante real pois, enquanto percorre a trajetória praticamente circular, num plano vertical, troca uma força com o assento do banco onde está sentado. E literalmente afunda mais no banco durante a manobra, como se estivesse mais pesado. Isso acontece em todos os pontos da pista, até mesmo no ponto mais alto da trajetória. Mas pense: se ele ficasse mais pesado de verdade, no ponto mais alto da trajetória ele deveria ter um contato menor com o assento do banco, ou seja, afundaria menos no assento, concorda? Se afunda mais, é porque o contato com o banco aumentou. E é exatamente aí que surge a sensação de ficar mais pesado. Quem dá a real sensação de peso, na prática, não é o próprio peso P mas o componente normal N da força de contato que o corpo do piloto troca com o banco.

Se foi divulgado que o piloto ficou sujeito a uma "força 6,5 G", acreditando na veracidade da informação e supondo que essa "medida" foi realizada no ponto mais alto da trajetória, devemos interpretar que a força normal N de contato do assento do banco sobre o seu corpo atingiu valor 6,5 vezes o seu peso. O efeito é equivalente a um aumento de 6,5 vezes no valor da aceleração g da gravidade. Em outras palavras, é como se a gravidade crescesse para 6,5 x 9,8 = 61,75 m/s². Mas note que o peso P (= m.g) do piloto não se altera uma vez que nem a sua massa m e nem a gravidade g local mudam de valor por conta do looping. O piloto continua sendo puxado para o centro da Terra pela mesma atração gravitacional de sempre, a velha e conhecida força peso de módulo m.g constante.  Mas sente-se mais pesado, mais afundado e "colado" no banco do carro por conta do crescimento da normal N. Da mesma forma, o carro também fica mais "grudado" à pista. Durante a manobra sua molas e amortecedores ficam mais deformados. Quanto maior esse efeito sobre o carro, menor o risco dele perder contato com a pista e, portanto, maior a segurança na manobra.

Para o corpo do piloto, o aumento brusco da força normal N trocada com o banco é um esforço e tanto! Algo semelhante ao que acontece com pilotos de aviões de caça em manobras radicais ou astronautas em plena decolagem das suas naves ou em possíveis manobras bruscas no espaço.

 

Qual é valor da velocidade mínima para completar um looping?

A Segunda Lei de Newton diz:

Segunda_Lei_Newton

A aceleração centrípeta de um corpo que se move com velocidade V e faz curva circular de raio r é dada por:

aceleracao_centripeta

No caso do F-Pace realizando um looping vertical, como pode ser visto na montagem fotográfica abaixo, as forças que atuam sobre o veículo no ponto crítico, o ponto mais alto da trajetória, são o peso P e a força de contato normal N com a pista, ambas verticais e para baixo.

Jaguar_F-Pace_looping_forces

Montagem sobre imagem original divulgada pela Jaguar mostrando as forças peso e normal sobre o
carro no ponto mais alto do looping.

 

Juntas, as forças N e P puxam o carro para o centro da curva. Logo, compõem a força resultante centrípeta Rc que garante que o veículo complete a trajetória circular.

A Segunda Lei de Newton, aplicada à resultante centrípeta, prevê que:

resultante_centripeta

Daí teremos:

Jaguar_calc_01

No limite em que o carro poderia perder contato com a pista, o primeiro passo para uma trágica queda, a força normal de contato tenderia para zero (N = 0). Assim teríamos:

Jaguar_calc_02

Pelo cálculo acima, concluímos que a velocidade mínima para o carro completar o looping vale a raíz quadrada do produto do raio r da curva pela aceleração local da gravidade g. E, se você é bom observador, notou que a massa m do carro, presente nos dois membros da expressão, foi cancelada. É a Matemática nos ajudando a perceber, por lógica, que o valor da velocidade mínima independe da massa do corpo que realiza o looping, no caso o carro. A Matemática é uma super ferramenta a serviço da Física!

Como sabemos o valor da gravidade local (g = 9,8 m/s²) e também o valor do raio da pista que corresponde à metade da sua altura ou diâmetro (r = 19,08 m / 2 = 9,54 m), podemos encontrar a velocidade mínima do carro para completar o looping com segurança. E, como r e g estão em unidades do SI – Sistema Internacional de Unidades, a velocidade será dada em m/s. Confira:

Jaguar_calc_03

Para transformar 9,67 m/s para km/h, unidade que nos é mais familiar, basta multiplicar 9,67 pelo fator 3,6. Logo:

Jaguar_calc_04

A velocidade mínima obtida é de aproximadamente 35 km/h, o que nos leva a concluir que carro não precisa de muita velocidade para completar o looping.

Por outro lado, seria loucura tentar completar a manobra com apenas 35 km/h, ou seja, bem perto do limite de segurança. Concorda? Nessa situação o carro estaria praticamente perdendo contato com a pista! É muito mais sensato ter velocidade maior do que mínima porque "antes sobrar do que faltar velocidade" para completar a manobra!

Mas também não seria sensato ter velocidade muito alta.  Isso dificultaria a entrada do carro na pista estreita bem como a manutenção do veículo na mesma uma vez que o piloto teria bem menos tempo para reagir a qualquer emergência.

Analisando o vídeo, dá para notar que o carro está correndo. Certamente acima de 35 km/h. Mas não parece ser uma velocidade absurdamente alta. Veja você mesmo o vídeo mais uma vez e me diga se concorda comigo. Para fazer o looping o automóvel atinge uma velocidade alta mas nada absurda, dentro dos padrões de um carro de passeio, ainda que esportivo.

Será que dá para descobrir qual a velocidade real do carro durante a manobra? Vamos tentar? Confira a análise a seguir.

 

Qual era a velocidade real do F-Pace durante o looping?

Segundo o que foi divulgado oficialmente, o piloto, durante a manobra, ficou submetido a "6,5G". Traduzindo para a boa e velha Física, "6,5G" quer dizer que o piloto "sentiu" em seu corpo uma força normal N equivalente a 6,5 vezes o seu peso, ou seja:

Vamos supor que essa sensação de aumento de peso se deu no ponto crítico, ou seja, no ponto mais alto da trajetória.

Sobre o piloto, sentado no banco e no ponto mais alto do looping, atuam duas forças verticais e para baixo: normal N (componente normal da força de contato do banco sobre o corpo do piloto) e peso P (atração gravitacional do planeta Terra sobre o corpo do piloto). A próxima ilustração explicita essa ideia.

Jaguar_F-Pace_corpo-do-piloto

Normal e Peso que atuando sobre o corpo do piloto no ponto mais alto do looping
Montagem feita sobre imagem original obtida em overtakingisfun.blogspot.com.br.

Fica fácil perceber na imagem acima que normal N e peso P somam-se vetorialmente para dar a resultante centrípeta vertical e para baixo que, pela Segunda Lei de Newton, pode ser escrita como:

Jaguar_calc_01

Na expressão acima podemos substituir N por 6,5P. Assim:

Jaguar_calc_06a

Logo:

Jaguar_calc_07a

A força peso P pode ser escrita como P = m.g (m é a massa do corpo e g a gravidade local). Sabemos que a aceleração centrípeta pode ser substituída por V²/r (V é a velocidade do corpo e r o raio da trajetória circular). Assim:

Jaguar_calc_08a

Note, na expressão acima, que a massa m do piloto foi cancelada. Com essa expressão. independente da massa do motorista. podemos obter o valor da velocidade V do piloto (e portanto do carro) exatamente no ponto mais alto do looping uma vez que conhecemos o valor da gravidade (g = 9,8 m/s² ) e do raio da pista (r = 9,54 m). E, mais uma vez operando em unidades do S.I., encontramos a velocidade em m/s:

Jaguar_calc_09a

Usamos novamente o fator 3,6 para converter 26,5 m/s para km/h:

Jaguar_calc_10

 

Concluímos que a velocidade do F-Pace foi algo em torno de 95 km/h, valor bastante comum para um carro de passeio, ainda que um super esportivo. E, se você está achando a velocidade baixa, confira captura do frame 0:51 s do vídeo do looping.

Captura do frame 0:51s do vídeo mostrando o velocímetro em destaque

Captura do frame 0:51s do vídeo do looping mostrando o velocímetro do SUV F-Pace em destaque

 

Embora não dê para ler os números na imagem do vídeo, conferi no site brasileiro da Jaguar como é o painel do carro. E o conta giros fica à direita do velocímetro. Dessa forma, o ponteiro que podemos ver "deve ser" do velocímetro. Se realmente for, indica obviamente a velocidade do carro que, "no olhômetro", parece estar numa posição ligeiramente inferior 1/3 do fundo de escala do velocímetro que é de 300 km/h para o F-Pace. A imagem parece ratificar os cálculos acima pois 1/3 de 300 km/h daria 100 km/h. Certo?

Eu nunca entrei num F-Pace. Deve ser um carro incrível! Mas, se você conhece essa super máquina por dentro, me ajude a confirmar se a interpretação da imagem que fiz logo acima está correta ou não. Ok? Quem sabe alguém representante da Jaguar aqui no Brasil…

Aos colegas professores leitores do blog

Tenho muitos leitores do blog que são professores de Física. Muitas vezes os colegas vêm aqui buscar inspiração para questões de prova ou exercícios extras para trabalhar com seus alunos em aula. Fico bastante feliz quando isso acontece! É um enorme prazer compartilhar boas ideias de Física contextualizada com quem se interessa pela boa Ciência!

Mas deixo uma dica: se for usar a manobra do F-Pace com os seus alunos, arredonde r = 9,54 m para r = 10,0 m e também g = 9,8 m/s² para g = 10,0 m/s². Assim, a velocidade mínima para completar o looping dará 10 m/s, valor redondo e equivalente a 10 x 3,6 = 36 km/h. É que V² = r.g = 10 x 10. Isso vai facilitar os cálculos pelos alunos sem comprometer a segurança do piloto uma vez que arredondando tanto r quanto g ligeiramente para cima estaremos arredondando a velocidade mínima para completar o looping também para cima, o que garante que o piloto fará a manobra sem risco, ainda que bem perto do limite.

Foi exatamente o arredondamento que eu fiz numa prova do CEI, Poços de Caldas, MG, aplicada ontem para meus alunos da primeira série do ensino médio e que trazia exatamente o problema do looping completado pelo Jaguar F-Pace.


Já publicado no Física na Veia!

Sobre o autor

Dulcidio Braz Jr é físico pelo IFGW/Unicamp onde atuou como estudante e pesquisador no DEQ – Departamento de Eletrônica Quântica no final dos anos 80. Mas foi só começar a lecionar física para perceber que seu caminho era o da educação. Atualmente, além de professor, é autor de material didático pelo Sistema Anglo de Ensino / Somos Educação e pela Editora Companhia da Escola. É pioneiro no Brasil no ensino de Relatividade, Quântica e Cosmologia para jovens estudantes do final do ensino médio e início do curso superior. E faz questão de dizer que, aqui no blog, é professor/aluno em tempo integral pois, enquanto ensina, também aprende.

Sobre o blog

"O Física na Veia! nasceu em 2004 para provar que a física não é um “bicho papão”. Muita gente adora física. Só que ainda não sabe disso porque trocou o conteúdo pelo medo. Se começar a entender, vai gostar. E concordar: a Física é pop! Pelo seu trabalho de divulgação científica, especialmente em física e astronomia, sempre tentando deixar assuntos árduos mais leves sem jamais perder o rigor conceitual, o Física na Veia! foi eleito por um júri internacional como o melhor weblog do mundo em língua portuguesa 2009/2010 pelo The BOBs – The Best of Blogs da alemã Deutsche Welle."