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Física na Veia

Crew Dragon atracou na ISS com sucesso depois de 19 h. Por que tanto tempo?

Prof. Dulcidio Braz Júnior

31/05/2020 13h04

 

A capsula Crew Dragon da empresa Space X foi lançada ontem, 30 de maio, às 16h22min (horário de Brasília), rumo a ISS – International Space Station (ou Estação Espacial Internacional). Veja o vídeo acima.

Ela foi para o espaço impulsionada pelo moderno foguete Falcon 9 da empresa SpaceX levando dois  americanos — Robert Behnken e Douglas Hurle — para uma missão oficial da NASA.

Enquanto eu escrevia este texto, no domingo (31) de manhã, a capsula aproximou-se da ISS onde, por volta das 11h16min (horário de Brasília), acoplou-se com sucesso para que os astronautas possam em breve desembarcar para missão oficial até agosto. Acompanhei o processo pelo canal no Youtube da NASA TV e por lives de amigos da divulgação científica.

Crew Dragon minutos antes do acoplamento com a ISS (Crédito: NASA TV)

 

Vale lembrar que depois que os ônibus espaciais foram aposentados, em 2011, este é o primeiro lançamento de um foguete tripulado rumo a ISS que parte de solo americano. Lá se vão 9 anos! E é o primeiro voo tripulado feito por uma empresa privada. Logo, uma missão duplamente histórica!

A ISS orbita a Terra a cerca de apenas 400 km de distância, praticamente a distância Rio de Janeiro – São Paulo. Mas a viagem da capsula até a estação espacial demorou aproximadamente 19 h, muito tempo para uma nave espacial tão rápida, não?

Confira, na imagem abaixo, a expressão matemática da velocidade escalar média que aprendemos no ensino médio.

Se usarmos o conceito de velocidade escalar média (Vm), supondo que a viagem da Terra até a ISS tem ΔS = 400 km e dura Δt = 19 h, podemos chegar ao suposto valor real da velocidade média da nave nesta viagem espacial. Veja:

Chegamos a uma valor de 21 km/h ou, dividindo por 3,6, fator de conversão de km/h para m/s, a 5,85 m/s. Note que é um valor compatível com a velocidade média de uma lenta carreta carregada com toneladas de carga viajando entre as duas capitais de SP e RJ. Dá para viajar de bike bem mais rápido do que isso, concorda? Para uma nave espacial, não é um valor muito baixo de velocidade? Em outras palavras, por que a nave demora tanto tempo assim para chegar na ISS? Ou será que tem algo errado nesta conta/raciocínio? Pense!

Antes de responder a esta pergunta, você sabe qual é a velocidade orbital da ISS? Ou, se não lembra o valor de cabeça, sabe como encontrá-lo? E a velocidade da Crew Dragon, quanto vale? Vamos dar uma passada primeiro por estas curiosas ideias físicas.

Cálculo da Velocidade Orbital da ISS

Para simplificar, vamos imaginar que a ISS orbita a Terra numa órbita perfeitamente circular e a uma altitude h = 400 km. Aproximando  o raio da Terra para R = 6400 km, a ISS executa uma órbita de raio r = R + h = 6800 km.

A força gravitacional FG que mantém esta órbita faz o papel de força resultante centrípeta¹, ou seja, puxa a ISS sempre para o centro da Terra, impedindo que ela escape para o espaço pela tangente à trajetória.  Logo, a força gravitacional FG cumpre o papel de força resultante centrípeta¹ RC.

A Lei da Gravitação Universal nos diz que:

onde G = 6,67.10-11 N.m²/kg² é a constante da gravitação universal, M = 6.1024 kg é a massa da Terra, m a massa da ISS e r = R + h é a distância entre o centro da nave e o centro da Terra.

A Segunda Lei de Newton para uma força resultante centrípeta¹ é dada por:

onde m é a massa da ISS, V a sua velocidade orbital e r = R + h o raio da sua órbita ao redor da Terra para R o raio da Terra e h a altitude da ISS em relação à superfície da Terra (ou nível do mar).

Podemos igualar RC e FG, uma vez que FG faz o papel de RC no movimento orbital da ISS. E teremos:

Acima demonstramos que a velocidade orbital da ISS ou de qualquer satélite ao redor da Terra pode ser obtida por:

Note que na dedução a massa m da ISS foi cancelada matematicamente, o que significa fisicamente que tal velocidade não depende da massa do corpo em órbita mas apenas da massa M do corpo central, além da constante G e do raio r da órbita explicitados na expressão acima.

A ideia da órbita aproximadamente circular da ISS de massa m e raio r = R + h você confere na ilustração abaixo. Note que a ilustração está propositalmente fora de escala. E tem outro detalhe: a órbita da ISS não é perpendicular ao equador terrestre como sugere a ilustração que tem a proposta didática apenas de evidenciar os parâmetros V, M, m, R, h e r.

ISS (ou qualquer satélite) de massa m orbitando a Terra em trajetória de raio r = R + h

 

Podemos, a partir da expressão acima, finalmente calcular o valor da velocidade orbital da ISS² lembrando que o seu o raio orbital r mede nestas condições aproximadamente r = R + h = 6400 km + 400 km = 6,4.10m +  0,4.10m =  6,8.10m sendo a massa da Terra M =  6.1024 kg e o valor da constante gravitacional G = 6,7.10-11 N.m²/kg², todos valores aproximados mas dentro da precisão que necessitamos para o propósito deste texto. Confira as continhas logo abaixo:

Note que desta vez trabalhamos inicialmente no Sistema Internacional de Unidades e obtivemos a velocidade orbital em m/s. Em seguida, multiplicamos por 3,6 para converter para km/h, unidade com a qual estamos mais familiarizados pois é usada nos velocímetros dos nossos veículos aqui no Brasil.

Descobrimos, pelos cálculos acima, que a ISS viaja ao redor da Terra com velocidade orbital de cerca de 27.885 km/h em relação ao centro do nosso planeta tomado como referencial! Incrível, não? Praticamente 30 vezes a velocidade de cruzeiro de um avião comercial a jato! Com esta velocidade, a ISS completa uma volta na Terra a cada 1,5 h aproximadamente!

No site www.isstracker.com você segue virtualmente a ISS e pode ver, em tempo real, sobre que ponto da Terra ela está passando bem com saber a sua altitude e a sua velocidade. Mude as unidades (UNITS) para o sistema métrico (Metric) para ver a altitude em km e a velocidade em m/s.

 

A Crew Dragon vai direto para a ISS, em linha reta?

Não. Isso seria muito perigoso porque a velocidade relativa entre a capsula e a ISS seria muito grande! E é justamente aí que está o "erro" no raciocínio e, portanto, no cálculo da velocidade média de aproximadamente 21 km/h para a nave lá no começo do post! A viagem não tem somente 400 km. Explico o melhor a ideia logo abaixo.

O que se faz na prática, de forma simplificada, é colocar a capsula com os astronautas orbitando a Terra numa órbita bem parecida com a da ISS, na mesma altitude h = 400 km. Assim, a capsula deverá ter praticamente a mesma velocidade da ISS, pouco menos de 28000 km/h como calculamos acima. Na verdade, a capsula terá velocidade ligeiramente superior à da ISS o que significa que vai "perseguir" a ISS em sua órbita e, de forma segura e gradativa, aproximar-se da Estação Espacial para a delicada operação de nela atracar.

Note que ambas, capsula e ISS, estarão viajando muito rapidamente ao redor da Terra. A velocidade que calculamos acima toma o centro da Terra como referencial. Mas a velocidade relativa entre elas será pequena. Na prática, é como se  ISS ficasse parada e a capsula fosse ao seu encontro lentamente, de forma controlada, manobrável, e segura.

Para você entender melhor a ideia, é como se tivéssemos dois carros viajando numa estrada, um atrás do outro. O da frente vai a 108 km/h, ou 30 m/s, e o de trás viaja a 31 m/s. Tal cenário, fisicamente, se tomarmos o carro da frente como referencial, é como se ele estivesse parado e o de trás viajasse a 31 – 30 = 1 m/s e em aproximação. Em outras palavras, o veículo de trás aproxima-se lentamente do carro da frente a uma taxa de 1 m a cada s, bem pequena, apesar dos dois estarem viajando em altas velocidades em relação ao asfalto.

É por isso que o acoplamento entre a capsula e a ISS demora 19 h!  A viagem não é de apenas 400 km! Para a Crew Dragon atingir a altitude orbital da ISS, 400 km acima da superfície do nosso planeta, são meros 12 min. Imagine uma viagem Rio de Janeiro – São Paulo em 12 min! Mas a viagem é bem maior do que os meros 400 km de altitude e corresponde a pouco mais de 12 voltas completas ao redor do nosso planeta para que a Crew Dragon alcance gradativamente a ISS.

Deu para entender a ideia? E tudo baseado na belíssima e muito bem-sucedida Mecânica Clássica de Isaac Newton!

 

Que tal pilotar a Crew Dragon e atracar na ISS?

Tela do simulador

Para ter uma ideia da dificuldade de pilotar a Crew Dragon e atracar na ISS, você pode usar este simulador do site da Space X.  Nele você controla movimentos de rotação (comandos à direita) e de translação (comandos à esquerda) da Crew Dragon "mirando" o ponto de acoplamento nave-ISS através de um headup display no vidro dianteiro da nave. Experimente! Você vai ver que não é nada simples porque no espaço, qualquer comando de virar ou rotacionar a nave, pela falta de resistência do ar e por conta da inércia³, provoca interminável rotação!

Boa diversão!

 

Abraço do prof. Dulcidio! E Física e Astronáutica na veia!


¹ Força resultante centrípeta é a força resultante que puxa um corpo em movimento circular para o centro da curva, impedindo que, por inércia, este escapela pela direção tangencial;
² Esta expressão é bem mais geral e nos serve para obter a velocidade orbital V de qualquer corpo de massa m ao redor de outro corpo de massa M. Note que, neste caso, só a massa M do corpo central importa no cálculo do valor da velocidade orbital.
³ Inércia é a tendência que todo corpo tem de seguir com o mesmo vetor velocidade em que se encontra se a resultante das forças sobre ele for nula.

Para saber mais

Sobre o autor

Dulcidio Braz Jr é físico pelo IFGW/Unicamp onde atuou como estudante e pesquisador no DEQ – Departamento de Eletrônica Quântica no final dos anos 80. Mas foi só começar a lecionar física para perceber que seu caminho era o da educação. Atualmente, além de professor, é autor de material didático pelo Sistema Anglo de Ensino / Somos Educação e pela Editora Companhia da Escola. É pioneiro no Brasil no ensino de Relatividade, Quântica e Cosmologia para jovens estudantes do final do ensino médio e início do curso superior. E faz questão de dizer que, aqui no blog, é professor/aluno em tempo integral pois, enquanto ensina, também aprende.

Sobre o blog

"O Física na Veia! nasceu em 2004 para provar que a física não é um “bicho papão”. Muita gente adora física. Só que ainda não sabe disso porque trocou o conteúdo pelo medo. Se começar a entender, vai gostar. E concordar: a Física é pop! Pelo seu trabalho de divulgação científica, especialmente em física e astronomia, sempre tentando deixar assuntos árduos mais leves sem jamais perder o rigor conceitual, o Física na Veia! foi eleito por um júri internacional como o melhor weblog do mundo em língua portuguesa 2009/2010 pelo The BOBs – The Best of Blogs da alemã Deutsche Welle."