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Física na Veia

Fraude na Megasena?

Prof. Dulcidio Braz Júnior

25/06/2018 20h32

Print da página oficial da Megasena com o resultado do sorteio do último sábado

 

O resultado do concurso 2052 da Megasena, sorteado no último sábado (23/junho), foi no mínimo bizarro. Note que todas as seis dezenas estão entre 50 e 59.

Print do resultado do sorteio de 23 de junho de 2018

 

O resultado do concurso anterior, que reproduzo abaixo, tem as dezenas melhor distribuídas e, portanto, parece mais natural.

Print do resultado do sorteio de 23 de junho de 2018

 

Muita gente, diante do curioso resultado, está dizendo que se trata de uma prova incontestável de fraude porque supõe sem nenhuma base científica que seria impossível na prática um sorteio aleatório dar este resultado. Na verdade, quem diz isso está provando outra coisa: que desconhece Estatística básica!

Se o resultado fosse 60, 61, 66, 67, 68 e 69, aí eu concordaria que seria rigorosamente impossível porque no cartão da Megasena não existem dezenas disponíveis acima de 60. É a regra do jogo! Mas qualquer combinação de seis dezenas entre 01 e 60 — qualquer mesmo — é igualmente provável e pode, portanto, acontecer. Quem nos permite fazer tal afirmação é a Estatística, um ramo da Matemática, bastante utilizado na Física, conhecimento científico testado e comprovado em inúmeras situações práticas distintas até mesmo além da Fisica¹.

O problema é que a Megasena admite muitos resultados. Cada resultado é uma combinação particular de 6 dezenas escolhidas dentre um total de 60 dezenas. Acertar exatamente a combinação sorteada é algo possível, embora muito pouco provável. Por isso, vez ou outra alguém acerta porque é estatisticamente possível acertar a combinação sorteada, embora pouco provável.

Vamos tentar estimar qual é a probabilidade de acertar numa aposta simples as seis dezenas da Megasena?

Probabilidade

Por análise combinatória, que é matéria de ensino médio, podemos calcular o total de combinações de n dezenas em grupos de p dezenas. Lembra da formulinha? "Combinação de um total de n elementos em grupos de p elementos". Para arejar a sua memória, aqui vai ela!

No nosso caso, n = 60 e p = 6. Logo:

Lembra como calculamos o "fatorial"? Por exemplo, quando dá 3! (lê-se três fatorial).
E a resposta é: 3! = 3 x 2 x 1 = 6.
Lembrou? Usando esta ideia, vamos calcular C60,6:

Entendeu porque desenvolvi 60! no numerador e parei no 54!? É que tanto no numerador quanto no denominador (em cima e embaixo da fração) temos 54!. Logo, podemos "cancelar" os dois. Veja:

Depois da devida simplificação do 54!, ficamos com uma expressão mais simples:

Não vamos fazer essa conta na mão, vamos? Temos calculadora pra que? Na maquininha obtive:


E, mais uma vez clicando na maquininha mágica de calcular:

Conclusão: existem 50.063.860 combinações possíveis de 6 dezenas num universo de 60 dezenas. São 50 milhões, 63 mil e 869 possibilidades de resultados. E você, jogador, tem que acertar UM resultado, na mosca!

Não por coincidência, no site oficial da Megasena (Caixa Econômica Federal), exatamente este valor de probabilidade é divulgado. Confira aqui.

Fácil acertar as 6 dezenas? Nem um pouco! A probabilidade (P) de acertar as 6 dezenas sorteadas em qualquer concurso da Megasena jogando a aposta mínima de apenas 6 dezenas é "um sobre o total de combinações possíveis", ou seja:

Sim, a conta acima foi feita na calculadora também! Note que o número 1,997448858 que aparece na frente da potência de dez pode ser aproximado para 2, sem muito prejuízo. Concorda? Então a probabilidade aproximada de ganhar na Megasena, acertando as 6 dezenas na mosca, com aposta mínima, é:

Para ficar mais fácil interpretar o valor acima, vamos transformar numa fração de denominador 100, ou seja, em porcentagem. Ficaremos com:

Conclusão: a probabilidade de qualquer combinação numérica de 6 dezenas retiradas aleatoriamente do total de 60 dezenas é de apenas 0,000002% , o que é muito pequeno, e quase zero.

Em outras palavras…

 

"Se você não jogar na Megasena, a probabilidade de ganhar é zero. Se jogar, é praticamente zero²"

 

Jogar ou não jogar, estatisticamente, é quase a mesma coisa! Mas só quem arrisca tem a mínima chance de 0,000002% de ganhar, ou seja, acertar as seis dezenas, quaisquer que sejam elas, incluindo a combinação 50 51 56 57 58 59 que tem a mesma probabilidade de ser sorteada que 01 05 06 37 44 53 ou 01 02 03 04 05 06 ou qualquer outra das 50 milhões, 63 mil e 869 possibilidades de resultados. Entendeu?

 

Observação curiosa

As pessoas fazem jogos inusitados, com combinações aparentemente improváveis mas que, estatisticamente, pelo raciocínio acima, têm a mesma chance de sorteio. Em especial as pessoas que não se prendem à bobagens do tipo "isso nunca vai ser sorteado".

Prova disso está no print da página oficial de resultados da Megasena, lá em cima, que mostra que além dos 4 acertadores "sortudos" da curiosa combinação "50 51 56 57 58 59", outras 152 apostas acertaram a quina, ou seja, tinham 5 das 6 dezenas curiosas sorteadas, em combinações também curiosas e aparentemente improváveis, mas que insisto: têm a mesma probabilidade estatística mínima de ser sorteada. 0,000002%. Quase nada. Mas têm!

Lembrando Carl Sagan³ (1934-1996),

Abandone de vez o mundinho assombrado pelos demônios. Não leve a sério qualquer bobagem (fakenews) que chegue até você. Nem faça o pior que é replicar tais conteúdos vazios e passá-los adiante! Invista na Ciência!


¹ Nas eleições, por exemplo, as pesquisas de boca de urna, quando sérias, usam Estatística. E chegam muito perto do resultado com margem de erro de 2 ou 3 pontos percentuais. É Ciência bem aplicada!
² Esta ideia não é minha. É de um professor do IMECC – Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica da Unicamp – Universidade Estadual de Campinas. Por falha de memória, não estou me lembrando do nome dele, já falecido. Vou pesquisar e, se descobrir, volto aqui para dar os devidos créditos.
³ Carl Edward Sagan, americano, astrofísico de formação, foi um escritor e divulgador científico de muito impacto. Sua série Cosmos que passou na TV nos 80's — e acredite se quiser — na Rede Globo fez enorme sucesso e incentivou muitos jovens da época a se interessarem mais por Ciência, em particular este velho professor que acabou virando divulgador científico também! "O Mundo Assombrado Pelos Demônios" é um dos seus imperdíveis livros no qual Sagan, "literalmente assombrado com explicações pseudocientíficas e místicas que inundam cada vez mais os meios de comunicação, reafirma a importância Ciência e da Tecnologia para iluminar os dias de hoje e recuperar os valores da racionalidade".

Este post também foi publicado no Física na veia!  no Steemit, neste link

Sobre o autor

Dulcidio Braz Jr é físico pelo IFGW/Unicamp onde atuou como estudante e pesquisador no DEQ – Departamento de Eletrônica Quântica no final dos anos 80. Mas foi só começar a lecionar física para perceber que seu caminho era o da educação. Atualmente, além de professor, é autor de material didático pelo Sistema Anglo de Ensino / Somos Educação e pela Editora Companhia da Escola. É pioneiro no Brasil no ensino de Relatividade, Quântica e Cosmologia para jovens estudantes do final do ensino médio e início do curso superior. E faz questão de dizer que, aqui no blog, é professor/aluno em tempo integral pois, enquanto ensina, também aprende.

Sobre o blog

"O Física na Veia! nasceu em 2004 para provar que a física não é um “bicho papão”. Muita gente adora física. Só que ainda não sabe disso porque trocou o conteúdo pelo medo. Se começar a entender, vai gostar. E concordar: a Física é pop! Pelo seu trabalho de divulgação científica, especialmente em física e astronomia, sempre tentando deixar assuntos árduos mais leves sem jamais perder o rigor conceitual, o Física na Veia! foi eleito por um júri internacional como o melhor weblog do mundo em língua portuguesa 2009/2010 pelo The BOBs – The Best of Blogs da alemã Deutsche Welle."