Como é possível acender a tocha olímpica com a luz solar?
Seguindo a tradição, aconteceu hoje, na cidade de Olímpia, Grécia, às 11h (6h no horário de Brasília), a cerimônia para acender a tocha olímpica. É com esse fogo que será acesa futuramente a pira olímpica em pleno estádio do Maracanã e que permanecerá acesa durante os Jogos Olímpicos 2016 que acontecem no Rio de Janeiro a partir de 5 de agosto. A pira olímpica, enquanto acesa, marca o período de realização das competições internacionais nas mais diversas modalidades olímpicas.
Na foto vemos a atriz grega Katerina Lehou vestida como uma sacerdotisa da antiguidade grega acendendo a tocha usando uma superfície refletora para concentrar os raios solares. A tradição diz que o fogo olímpico deve ser coletado "diretamente do Sol".
Como isso funciona? A Física explica…
Sol: raios paralelos?
Os raios de luz que deixam o Sol se espalham em todas as direções ao redor da nossa estrela. Logo, divergem, ou seja, não são paralelos.
Mas a pequena porção do feixe cônico de luz solar que atinge a Terra, distante cerca de 150 milhões de quilômetros do Sol, contém raios de luz praticamente paralelos. A figura abaixo, propositalmente fora de escala, ilustra a ideia.
Sobre o paralelismo dos raios solares, usei termo "praticamente" porque, a rigor, o ângulo θ entre os raios solares que chegam na Terra não é 0° (o que garantiria paralelismo perfeito) mas cerca de 0,5° (raios "quase" paralelos). Ok?
Antes que me pergunte, sim, na figura acima o ângulo θ parece ser grande, bem maior do que 0,5°! É que a escala da figura, com eu já disse, está errada. Se mantivermos o tamanho do disco solar, a Terra deverá ser representada por uma bolinha ainda menor e deverá ficar bem mais distante da nossa estrela, ou seja, o valor de d (na escala real) deve ser bem maior do que aquele que está representado. E, quanto maior for a distância d, menor será o ângulo θ. Concorda? É o que ocorre na prática. E por isso o Sol tem cerca de meio grau de diâmetro aparente, ou seja, está tão distante de nós que seus raios, ao atingirem o nosso planeta, são "quase" paralelos.
Tratei desse assunto com mais detalhes (e até algumas continhas) em dois posts que se complementam (Curiosidade sobre os raios solares e O tamanho aparente dos astros, ambos na plataforma antiga do blog). Dá uma olhada depois, com calma, se quiser aprofundar o assunto.
O Ponto focal
Para começar, como vamos abordar a reflexão da luz, precisamos ter em mente as duas Leis da Reflexão, ou seja, as duas "regrinhas" que qualquer raio de luz obedece durante qualquer reflexão. Confira a seguir.
Se aplicarmos as duas Leis da Reflexão para um raio de luz incidente (a) que entra paralelo à linha (vermelha) que contém o centro de curvatura (C) e "toca" o espelho no vértice (V), ponto que fica bem no meio da superfície refletora côncava, descobrimos que o raio refletido (b) deverá passar num ponto que fica entre o centro de curvatura (C) e o vértice (V). A figura a seguir ilustra a ideia (sendo a direção normal N equivalente à da linha que liga o ponto de incidência do raio de luz na superfície refletora e o seu centro de curvatura C).
Numa superfície refletora côncava esférica qualquer, esse ponto por onde o raio refletido deve passar depois de sofrer reflexão e que chamaremos a partir de agora de foco (F) fica "mais ou menos" no ponto médio entre o centro de curvatura da superfície esférica (C) e o vértice (V). E, infelizmente, nem sempre o foco (F) é exatamente pontual. Em outras palavras, espelhos esféricos não são perfeitos, ou seja, não são estigmáticos. Espelhos esféricos podem não funcionar de forma ideal e, nesse casos, dizemos que são astigmáticos. Assim, na prática, o foco (F) de um espelho esférico pode, em alguns casos, ser uma mancha (conjunto de pontos) em vez de exatamente um ponto. Isso "complica" as coisas e faz com que o espelho possa formar imagens não muito nítidas.
Mas, dentro de certas condições especiais, conhecidas na teoria como Condições de Nitidez de Gauss¹, os espelhos esféricos terão um foco (F) bem definido, ou seja, pontual, e que ficará exatamente no ponto médio entre o centro de curvatura (C) e o vértice (V) do espelho, ou seja, a uma distância focal (f) do espelho que corresponde à metade do raio de curvatura (f = R/2).
Dessa forma, nos espelhos ideais (ou gaussianos), raios incidentes paralelos entre si e paralelos ao eixo principal do espelho vão convergir para o foco (F) que, de forma muito bem comportada:
- será pontual; e
- ficará exatamente no ponto médio entre o centro de curvatura (C) e o vértice (V) do espelho esférico côncavo.
A próxima imagem ilustra a ideia do foco (F) ideal.
O nome foco para esse ponto onde a luz solar visível (e também outras radiações solares invisíveis) se concentra(m) depois da reflexão vem de focus (fogo, em latim). E o nome não poderia ser melhor pois boa parte da energia solar que incide em toda a área da superfície refletora será concentrada num ponto, o que poderá causar superaquecimento em qualquer objeto ali posicionado e que, portanto, poderá ser incendiado, literalmente pegando "focus"!
Se os raios incidentes forem paralelos entre si mas não forem paralelos ao eixo principal do espelho esférico côncavo, serão concentrados noutro ponto que é um foco secundário (F') situado num plano conhecido por plano focal que contém o foco principal (F) e infinitos outros focos secundários (F'). Confira na ilustração abaixo.
De qualquer forma, sejam os raios paralelos ou não ao eixo principal do espelho, o efeito de concentrar a luz é sempre o mesmo, só que noutro ponto F' onde, uma vez colocado um objeto, também é possível incendiá-lo por superaquecimento. É exatamente o que acontece com a tocha olímpica que a atriz segura em suas mãos. Ele coloca a ponta da tocha, certamente embebida em algum fluido inflamável, exatamente na região que contém um ponto focal primário (F) ou secundário (F'). Dá para entender a ideia?
Mas temos um problema prático. Quanto maior um espelho esférico côncavo, mais radiação solar ele coletará e concentrará em F (ou F'), potencializando o efeito de superaquecimento, o que é bastante desejável. Mas espelhos esféricos muito grandes fogem das Condições de Nitidez de Gauss¹ e o ponto focal (F ou F') deixa de ser pontual, o que "dilui' um pouco a energia luminosa concentrada e, portanto, enfraquece o efeito de superaquecimento, o que não é nada desejável. Note que, ao tentarmos melhorar a captação/concentração da radiação solar, fazendo espelhos esféricos maiores, não conseguimos tanto sucesso por conta da perda da "focalização" da energia uma vez que o foco deixa de ser pontual e passa a ser uma região com pontos espalhados.
Como resolver esse impasse?
A solução é simples. A Geometria nos mostra que superfícies côncavas de perfil parabólico (em vez de esférico) têm foco pontual, perfeito, independentemente de serem pequenas ou grandes. Basta fazer o espelho parabólico (em vez de esférico) e o problema estará resolvido! E é exatamente o que podemos conferir na imagem que mostra a atriz Katerina Lehou colocando a ponta da tocha dentro da superfície refletora que, nitidamente, não tem perfil circular, bem arredondado, mas um perfil mais "bicudo", característico da parábola que garante focos pontuais (F ou F') perfeitos, concentrando com bastante eficiência a luz captada em toda a superfície refletora!
A tocha olímpica, com o fogo "original" do Sol, vai viajar pela Grécia. Depois pelo mundo. E em breve chegará ao Brasil, onde também vai cumprir a sua peregrinação até o início dos Jogos Olímpicos 2016.
Arquitetura "assassina"
Em setembro de 2013 ficou famoso um prédio ainda em construção em Londres que, revestido de material refletor, começou a queimar a sua vizinhança concentrando os raios de luz solar como um imenso espelho côncavo! É bem provável que você tenha ficado sabendo do fato que fez barulho nas redes sociais e também nos meios de comunicação.
Abordei o assunto no post É tudo uma questão de foco onde dei outros exemplos de concentração de luz e outras ondas eletromagnéticas usando superfícies côncavas esféricas ou parabólicas. Ficou interessado? Dá uma espiada!
(1) Primeira Condição de Nitidez de Gauss: se você ligar os extremos (ou bordas) do espelho ao próprio centro de curvatura (C), o ângulo formado pelos dois seguimentos de reta não pode exceder 10°; Segunda Condição de Nitidez de Gauss: os raios de luz incidentes no espelho devem ser paraxiais, ou seja, devem tocar o espelho numa região próxima ao eixo principal (para = perto, axial = eixo).
Veja/saiba mais
- Começa o percurso da tocha olímpica, após ser acesa na Grécia (matéria em vídeo da EFE Brasil)
- Especial UOL Olimpíadas (beta)
- Álbum do UOL (Imagens da cerimônia de acendimento da tocha olímpica para Rio 2016)
- Matéria do UOL sobre o ensaio para a cerimônia de acendimento da tocha olímpica
Já publicado aqui no Física na Veia!
- [04/09/2013] É tudo uma questão de foco (*)
- [13/02/2012] Curiosidade sobre os raios solares (*)
- [23/08/2005] O Tamanho aparente dos astros (*)
(*) posts na plataforma antiga do blog (não deixe comentários na plataforma antiga, deixe por aqui!)
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