Topo

Física na Veia

Pequeno deslize em questão de Física no vestibular da Unicamp

Prof. Dulcidio Braz Júnior

20/01/2016 18h12

Unicamp_fase2_2016_Q11_fisica

Onde está o pequeno deslize nessa questão?

 

Antes de tudo, é bom que se diga, sou fã incondicional do Vestibular da Unicamp que, se não me falha a memória, existe (separado da Fuvest) desde 1987. As provas, tanto na primeira quanto na segunda fase, são sempre muito bem feitas, criativas, com questões diferentes e originais e que, quase sempre, privilegiam a Física contextualizada, o que é bom que se diga é uma especialidade daqui do Física na Veia (confira post, ainda na plataforma antiga, que ratifica a minha afirmação).

Mas parece ter havido um pequeno deslize numa das questões da prova de Física da segunda fase 2016 desse importantíssimo vestibular e que aconteceu ontem. A prova trazia seis questões de Física (questões 7 a 12). Vejo um problema na questão 11, reproduzida logo acima (propositalmente sem um gráfico). Se quiser ver a prova original em PDF, baixe-a daqui.

Você consegue  me dizer qual é esse problema? Dica: está na segunda figura. Encontrou?

Antes de apontar o erro, escrevo abaixo um pouco da teoria sobre vetores e que servirá para justificar o que estou chamando de pequeno deslize da banca examinadora.

Grandezas Vetoriais

Pra começar, veja abaixo a definição de grandeza vetorial.

def_Grandeza_Vetoria

Forças são bons e importantes exemplos de grandeza vetorial. E, por isso mesmo, nas duas figuras da questão 11 da prova da Unicamp reproduzida lá no topo as forças são representadas por setas (ou segmentos de reta orientados) que, a rigor, chamamos de vetores.  Veja a seguir como deve ser um vetor e quais são as três características que o definem.

def_Vetor

Quando você escreve no papel uma letra qualquer com uma "setinha" em cima, o leitor atento e com um mínimo de conhecimento sobre grandezas vetoriais já sabe que trata-se de uma grandeza vetorial e logo imagina um vetor. A imagem abaixo, por exemplo, mostra dois vetores (força) de mesmo módulo (ou intensidade), na mesma direção, mas sentidos opostos. Note, em ambos, que sobre a letra F existe a tal "setinha" indicando que são grandezas vetoriais e que, portanto, devem ter módulo (ou intensidade), direção e sentido.

Vetores_opostos

Um equívoco bastante comum na hora de declarar uma grandeza vetorial é a indicação da letra com a "setinha" em cima como sendo igual a um número mais uma unidade de medida.

Se você não percebeu onde está o equívoco, explico. A letra com a "setinha" em cima pressupõe grandeza vetorial, aquela que tem três características. Certo? O número mais a unidade de medida corresponde apenas ao módulo da grandeza vetorial, apenas uma das três características que definem o vetor. Concorda? Logo, uma letra com "setinha" em cima não pode jamais ser igualada a APENAS um número mais uma unidade de medida! Isso porque um vetor não é somente um módulo. Todo vetor tem um módulo, a sua parte meramente escalar. Mas também tem direção e sentido, o que confere a ele o seu caráter espacial. Percebe a encrenca?

Mas é justamente isso que aparece impresso na questão da Unicamp reproduzida acima. Note que a letra F (de força) tem "setinha" em cima, nas duas figuras, indicando tratarem-se de grandezas vetoriais. Até aí, tudo bem. Mas na segunda imagem, depois do sinal de igualdade, só temos "10 N", ou seja, um número mais uma unidade de medida, o que caracteriza somente o módulo do vetor. Como não temos as três esperadas características do vetor (módulo, direção e sentido) logo depois do sinal de igual, a notação vetorial está equivocada! A ilustração abaixo confronta o modo errado (como apareceu no enunciado) e o modo certo de declarar uma grandeza vetorial com valor (ou módulo).

Unicamp_fase2_2016_Q11_fisica_certoXerrado

Confrontando o modo errado e o modo certo de declarar o valor de uma grandeza vetorial.

Se quem está declarando o vetor não quer abrir mão da"setinha" (que tem importância fundamental para deixar claro que se trata de uma grandeza vetorial), pode mantê-la e usar barras de módulo. Dessa forma fica claro que se trata de uma grandeza vetorial mas o que está sendo declarado é apenas o módulo (ou intensidade) da grandeza. Confira "forma I" na ilustração a seguir.

Unicamp_fase2_2016_Q11_fisica_certoXerrado2

Duas formas corretas de indicar o valor (ou módulo) da grandeza vetorial.

A forma I acima é a melhor. Ao usar a "setinha" sobre a letra, fica claro que F é grandeza vetorial que tem módulo que vale 10N. A forma II também é aceita. Mas é mais pobre que a forma I uma vez que omite a "setinha" sobre a letra F, o que pode em alguns casos gerar dúvida sobre F ser ou não uma grandeza vetorial.

_________________

Diante da teoria exposta acima, você concorda que a banca examinadora do Vestibular da Unicamp 2016 cometeu um pequeno deslize? Se um vestibulando faz isso na resolução de uma questão de Física na prova, certamente perde pontos pelas mãos dos corretores atentos a qualquer errinho.

Por isso mesmo, oriento, com bastante ênfase, que meus alunos de ensino médio e pré-vestibular prestem muita atenção na declaração de grandezas vetoriais. Nas avaliações, também não costumo poupá-los quando cometem esse deslize que certamente já foi discutido em sala de aula, muito antes da avaliação, dando ao aluno toda a chance de entender todas as nuances do tema.

Você acha que estou estou sendo detalhista demais? Se sim, pode até me chamar de chato!

É claro que NÃO SE TRATA de um erro absurdo e muito menos de algo que comprometa a resolução da questão, atrapalhando os alunos que disputam uma vaga no curso superior. Mas é um deslize. Escapou à correção severa da banca. Por outro lado, atire a primeira pedra quem nunca cometeu nenhum deslize.

O mais importante: meu texto chama a atenção para o problema. E exemplifica que ninguém está isento de deslizes, nem mesmo uma banca respeitabilíssima de um dos mais importantes vestibulares do país. Fica a dica para os estudantes. Foco, atenção redobrada, sempre!

 

Puxando na memória… 80's…

Aprendi notação vetorial do modo mais horrível: errando numa prova importante, já em pleno curso superior.

Vendo essa questão da segunda fase da Unicamp 2016 lembrei-me de que em 1983, quando eu estava no terceiro semestre da graduação em Física no IFGW, justamente na Unicamp, numa prova de Física Teórica III, que abordava o vetor Força Eletrostática (Força de Coulomb) e também o vetor Campo Elétrico, perdi preciosos pontos na nota porque não fui suficientemente rigoroso justamente na notação vetorial.

Quando fui pedir revisão de prova para o professor, cujo nome não vem ao caso agora, fui esculhambado pelos erros ingênuos que havia cometido. Ele foi duro. Duro não, carrasco! Acabou comigo! Eu, que vinha de escola pública e tinha consciência de vários furos na minha formação básica, tive que engolir a seco. E ser firme para não abaixar ainda mais a minha já bastante baixa auto estima. Ele, professor, pesquisador, naquele momento no papel de educador, poderia ter sido mais amigo. Poderia ter sido um verdadeiro educador. Mas não foi.

Mas não sinto raiva dele. Foi por causa dele que aprendi notação vetorial. Adoraria que tivesse sido pelas mãos dele. Não foi. Ele praticamente me botou pra fora da sala dizendo que "buscasse aprender o que eu já deveria saber desde o colegial" (naquela época ainda não usávamos o termo ensino médio). Simplesmente obedeci. Cabisbaixo,  desolado, fui atrás do conhecimento.

E tem mais. Esse "inesquecível" professor, sem querer, me mostrou de forma exemplar uma conduta nada profissional. Eu, que naquela época nem imaginava que me tornaria professor mais adiante, aprendi de um modo amargo que professores de verdade devem ensinar sempre. E não apenas cobrar. Aliás, antes de cobrar, devem ensinar muito, com todos os detalhes, com atenção e vontade de fazer todo aluno interessado aprender de verdade. E, ainda que o aluno erre na prova, cabe ao professor reensinar, sempre mostrando-se receptivo àqueles alunos que não desistem de aprender.

O remédio foi amargo. Mas funcionou. No final, é isso o que importa. Não é?


Resolução da prova da segunda fase 2016 da Unicamp

  • Indico, sem medo de errar, o Anglo Resolve, trabalho muito bem feito pelos meus colegas professores/autores do Sistema Anglo de Ensino. Quando entrar no site, escolha (no menu superior) o vestibular, o ano, e a prova cuja resolução comentada deseja acessar. Você pode filtrar as questões por matéria e até por assunto. É bem bacana! Divirta-se!

Já publicado no Física na Veia!

 

Sobre o autor

Dulcidio Braz Jr é físico pelo IFGW/Unicamp onde atuou como estudante e pesquisador no DEQ – Departamento de Eletrônica Quântica no final dos anos 80. Mas foi só começar a lecionar física para perceber que seu caminho era o da educação. Atualmente, além de professor, é autor de material didático pelo Sistema Anglo de Ensino / Somos Educação e pela Editora Companhia da Escola. É pioneiro no Brasil no ensino de Relatividade, Quântica e Cosmologia para jovens estudantes do final do ensino médio e início do curso superior. E faz questão de dizer que, aqui no blog, é professor/aluno em tempo integral pois, enquanto ensina, também aprende.

Sobre o blog

"O Física na Veia! nasceu em 2004 para provar que a física não é um “bicho papão”. Muita gente adora física. Só que ainda não sabe disso porque trocou o conteúdo pelo medo. Se começar a entender, vai gostar. E concordar: a Física é pop! Pelo seu trabalho de divulgação científica, especialmente em física e astronomia, sempre tentando deixar assuntos árduos mais leves sem jamais perder o rigor conceitual, o Física na Veia! foi eleito por um júri internacional como o melhor weblog do mundo em língua portuguesa 2009/2010 pelo The BOBs – The Best of Blogs da alemã Deutsche Welle."