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Física na Veia

Gotas de chuva na janela funcionam como lentes

Prof. Dulcidio Braz Júnior

11/01/2016 18h18

gotas_janela

Gotas d'água na janela depois da chuva.

 

Fotografei, com o celular, a paisagem vista pela janela do meu apartamento depois de uma chuva (imagem acima). As gotas d'água no vidro ficaram propositalmente nítidas enquanto a paisagem, de fundo, deixei borrada.

Dando zoom na região central da fotografia acima, podemos ver detalhes das gotas d'água. Confira você mesmo na imagem a seguir.

gotas_janela_zoom

Com zoom podemos ver em cada gota a imagem da paisagem minúscula e invertida.

 

Você percebeu que em cada gotinha é possível observar a imagem da paisagem bastante reduzida e de ponta-cabeça (a rigor, invertida)?

Por que isso acontece?

Já abordei esse tema em outros posts na plataforma antiga do blog. Retorno à ideia, agora usando uma imagem de minha autoria. Já fazia um bom tempo que eu mesmo queria fotografar o curioso fenômeno óptico que, apesar de comum, passa despercebido para a maioria das pessoas.

Confira as explicações físicas em detalhes logo abaixo.

Aposto que nunca mais você vai deixar de observar esse lindo fenômeno nas janelas molhadas que encontrar pelo resto da sua vida!

 

Entendendo o fenômeno

Da combinação de esferas e planos, conseguimos construir geometricamente seis diferentes tipos de lentes conhecidas na teoria como lentes esféricas.

Confira abaixo uma das seis possíveis lentes esféricas que chamamos de lente plano-convexa.

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Lente plano-convexa, feita a partir de um plano e uma esfera.

Outra possível lente esférica é a côncavo-convexa, obtida por duas esferas, e que você confere abaixo.

gotas_janela_04a

Lente côncavo-convexa, obtida por duas esferas.

Veja mais uma possível lente esférica, a bicôncava, também obtida por duas esferas.

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Lente bicôncava, construída a partir de duas esferas.

Note que as lentes plano-convexa e côncavo-convexa são mais grossas na região central e, na medida em que caminhamos para as bordas, afinam. Por isso mesmo são classificadas como lentes de bordas finas. A lente bicôncava, ao contrário, é mais grossa nas bordas e mais fina no meio. Ela é uma lente de bordas grossas.

Deu para entender o "espírito da coisa"? Tente imaginar como devem ser as outras três possíveis lentes esféricas (de um total de seis). Elas são de bordas finas ou de bordas grossas?

Para não esticar demais o nosso papo, organizo na ilustração a seguir todos os seis tipos de lentes esféricas possíveis. Confira se o resultado bate com o que você imaginou.

gotas_janela_03

As seis possíveis lentes esféricas, reagrupadas em duas famílias distintas.

Note que:
1) Lentes bordas finas também são chamadas de lentes convexas porque seus nomes terminam com a palavra convexa;
2) Lentes de bordas grossas também são chamadas de lentes côncavas porque seus nomes terminam com a palavra côncava.

É possível demonstrar que, qualquer lente de bordas finas (ou convexa), feita de material mais refringente que o meio externo, tem o "poder de concentrar a luz" que a atravessa. E, por isso mesmo, é classificada como lente convergente.  As lentes de bordas grossas (ou côncavas), também feitas de material mais refringente que o meio externo, fazem o oposto e, portanto, são classificadas como lentes divergentes.

Uma gota d'água no vidro da janela, vista de frente, tem a aparência aproximadamente arredondada, como ilustrado abaixo.gotas_janela_01

A mesma gota, vista de lado, nos revela um perfil peculiar. Confira.

gotas_janela_02a

Detalhe da gota d'água de perfil.

Notou que a gota d'água é plana de um lado e semi-esférica do outro?

gotas_janela_02b

A gota de perfil nos revela a sua forma: uma face plana e outra esférica.

A gota transparente tem exatamente a forma plano-convexa, a mesma forma da segunda lente da família das lentes de bordas finas. Pelo raciocínio acima, concluímos que a gota de chuva presa no vidro da janela, na prática, deve operar como uma lente!

Só falta descobrir qual o "efeito" dessa lente sobre a paisagem, ou seja, como deve ser a imagem que a gota (lente) forma do cenário de fundo.

Começamos por desprezar a lâmina de vidro que, na prática, apenas desloca lateralmente os raios de luz que a atravessam.  Dessa forma, a pequena gota opera como uma pequena lente de água imersa no ar. Sendo plano-convexa, pertence à família das lentes de bordas finas (ou convexas). E é mais refringente que o meio externo (ar) uma vez que a água tem índice de refração n = 1,33 contra praticamente n = 1,00 do ar.
Concluímos que a lente d'água deve ser capaz de concentrar a luz por refração ou seja, é uma lente convergente.

Toda lente (convergente ou divergente) tem 5 pontos importantes: 2 pontos A (pontos antiprincipais Ao e Ai), 2 pontos F (focos principais Fo e Fi) e 1 ponto O (centro óptico da lente). Associamos algumas propriedades físicas importantes, também chamadas propriedades notáveis, a esses pontos. Destaco abaixo duas delas que serão fundamentais para a compreensão do fenômeno aqui estudado.

Sabemos, por exemplo, que todo raio de luz que vem do objeto e incide na lente paralelamente ao seu eixo principal, refrata sofrendo desvio tal que acabará passando pelo foco Fi, do outro lado da lente (propriedade I). E, todo raio proveniente do objeto que, ao atravessar a lente, passa pelo seu centro óptico O, sai paralelo ao raio incidente. No caso de uma lente de espessura desprezível, esse raio "passa reto", ou seja, não sofre desvio algum (propriedade II).

Para simplificar o desenho, na ilustração a seguir represento o objeto por uma seta (amarela) vertical que aponta para cima e está diante de uma lente convergente representada pelo seu símbolo universal. Usando as duas propriedades notáveis descritas imediatamente acima para dois raios de luz que partem da ponta da seta (objeto), podemos descobrir onde esses mesmos raios se encontram após refratarem na lente e, portanto, podemos determinar a imagem que a lente conjugada para esse objeto. Veja o resultado logo abaixo.

gotas_janela_05

Caso I: imagem real (obtida pelo cruzamento de raios de luz "de verdade"), invertida, e menor que o objeto, entre Fi e Ai, depois da lente convergente, do lado oposto ao do objeto.

Esse é o primeiro caso (de um total de cinco) de formação de imagens em lentes convergentes. Mas já é suficiente para entendermos as imagens formadas na gotinha d'água.

Note que, para um objeto afastado da lente, mais longe do que o ponto antiprincipal Ao, a imagem forma-se "perto" da lente, entre Fi e Ai, é invertida e reduzida em relação ao objeto. Como são raios de luz "de verdade" (a rigor, raios de luz reais), dizemos que a imagem produzida pela lente é real.

Agora use um pouco de imaginação: se o objeto (seta) estivesse ainda mais afastado da lente, como seria a imagem produzida por refração? Vou ajudar no raciocínio chamando a sua atenção para dois fatos importantes:
I) O raio que entra paralelo e refrata por Fi não muda se o objeto se afasta da lente; mas
II) O raio de luz que passa por O fica menos inclinado com o afastamento do objeto em relação à lente.
Juntando I e II acima não é tão difícil perceber que os raios de luz que atravessam a lente se cruzariam mais perto de Fi se o objeto estivesse mais distante. Certo? Logo, a imagem seria ainda menor e também mais perto do foco Fi da lente. Concorda? Extrapolando, dizemos que, se o objeto estiver no infinito, sua imagem estará exatamente no Fi.

Agora, observe o seguinte:
a) A gota d'água é uma pequena lente convergente, como já vimos;
b) A paisagem vista pela janela, para cada gota, funciona na prática como objeto que está bem distante da lente (gota).
Pergunta: como deve ser a imagem conjugada pela gota d'água (lente) sabendo que o objeto está bastante afastado dela?
resposta, tomando a ilustração acima como referência e todo o raciocínio feito até agora, é imediata: a gota (lente) deve formar uma imagem bastante reduzida e invertida, localizada bem perto do foco Fi. Concorda?

E, não por coincidência, na imagem registrada em cada gotinha, vemos o céu para baixo e as casas para cima, ou seja, a imagem está invertida. E, em cada gotinha, a imagem da paisagem é bem pequenininha. Exatamente como prevê a teoria! E é por essas e outras que adoro a Física!

 

A Lupa, lente convergente, deve produzir o mesmo efeito da gota d'água

gotas_janela_lupa

Lupa típica, com lente convergente de vidro.

 

Uma lupa, além de ser uma lente de bordas finas (ou lente convexa), geralmente é feita de vidro, mais refringente que o ar. Logo, é convergente.

Peguei a minha lupa (foto acima) e levei-a para a mesma janela de onde fotografei a paisagem com as gotinhas d'água no vidro da janela.  A ideia era mostrar que a lupa faz, na prática, o mesmo efeito de cada gotinha, ou seja, produz imagem invertida e reduzida da paisagem. Confira o resultado abaixo.

gotas_janela_lupa_imagem

Uma lupa funciona de forma análoga à gotinha d'agua, conjugando imagem invertida e reduzida
da paisagem.

Privilegiei a nitidez da imagem formada pela lente. E, nesse caso, a própria lente (moldura e cabo) bem como a minha mão que a segura ficaram borradas. Por que isso aconteceu?

Aqui reside outro detalhe importante e que tem a ver com o tamanho das lentes (a rigor, com os raios de curvatura de suas faces). Discuto detalhes nesse post que você pode ler depois para aprofundar o assunto.

A lente da lupa é ligeiramente maior do que a minha mão fechada. Logo, é bem maior do que a gotinha d'água. Sendo mais rigoroso, a lente da lupa tem raio de curvatura bem maior do que o raio de curvatura da gotinha, Logo, a distância focal (distância de cada um dos dois focos à lente) na lupa deve ser bem maior do que na gotinha. Nas gotinhas a distância focal é da ordem de mm. Na lupa medi algo em torno de 20 cm. Como a imagem se forma perto do Fi da lente da lupa, ela estará quase 20 cm para trás da lente, mais para perto da câmera que usei para fazer a fotografia. Sendo assim, se a imagem conjugada pela lupa saiu bem nítida na fotografia, todo o resto, inclusive a paisagem de fundo, tinha mesmo que ficar borrada.

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Deu para entender porque gotinhas d'água no vidro da janela depois da chuva funcionam como lente convergente que formam imagens invertidas e minúsculas da paisagem?

Você também pode observar esse fenômeno nos vidros molhados dos automóveis! Nesse caso, só tente observar as imagens formadas pelas gotinhas se você for carona no veículo. Como motorista, especialmente com o carro em movimento, jamais! Segurança em primeiro lugar!

Aguardo os seus comentários.


Já publicado aqui no Física na Veia

(*) post(s) na plataforma antiga do blog

Sobre o autor

Dulcidio Braz Jr é físico pelo IFGW/Unicamp onde atuou como estudante e pesquisador no DEQ – Departamento de Eletrônica Quântica no final dos anos 80. Mas foi só começar a lecionar física para perceber que seu caminho era o da educação. Atualmente, além de professor, é autor de material didático pelo Sistema Anglo de Ensino / Somos Educação e pela Editora Companhia da Escola. É pioneiro no Brasil no ensino de Relatividade, Quântica e Cosmologia para jovens estudantes do final do ensino médio e início do curso superior. E faz questão de dizer que, aqui no blog, é professor/aluno em tempo integral pois, enquanto ensina, também aprende.

Sobre o blog

"O Física na Veia! nasceu em 2004 para provar que a física não é um “bicho papão”. Muita gente adora física. Só que ainda não sabe disso porque trocou o conteúdo pelo medo. Se começar a entender, vai gostar. E concordar: a Física é pop! Pelo seu trabalho de divulgação científica, especialmente em física e astronomia, sempre tentando deixar assuntos árduos mais leves sem jamais perder o rigor conceitual, o Física na Veia! foi eleito por um júri internacional como o melhor weblog do mundo em língua portuguesa 2009/2010 pelo The BOBs – The Best of Blogs da alemã Deutsche Welle."