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Física na Veia

O ENEM 2015 e as miragens. "Pegadinha"?

Prof. Dulcidio Braz Júnior

29/10/2015 23h57

ENEM_2015_cad-rosa_Q68

A prova do ENEM 2015, realizada no último sábado, 24 de outubro, trouxe uma questão sobre miragem superior, fenômeno físico também conhecido como Fata Morgana (Fada Morgana, em português). Trata-se da questão 68 do caderno rosa, reproduzida acima (baixe daqui outros cadernos da mesma prova).

A fonte da questão é uma publicação do site APOD – Astronomy Picture of the Day da NASA datada de 15 de abril de 2012 e, segundo a citação no rodapé da questão da prova, consultada em 6 de setembro do mesmo ano. Confira você mesmo a publicação original da NASA.

Ontem, o INEP, responsável pelo ENEM, divulgou o gabarito oficial e deu para a questão acima a resposta correta "b – refração". Eu havia resolvido a prova com meus alunos que prestaram ENEM e, diante das alternativas propostas, validei a "d – reflexão" como a "melhor" da cinco.

Você prestou ENEM? Que resposta deu para essa questão?

E o mais importante de tudo: qual é, de fato, a resposta correta?

Defendo, logo abaixo, a minha tese, justificando porque valido a alternativa "d" em vez da "b". Acompanhe o meu raciocínio. E depois deixe o seu comentário.

 

Pra começar, um pouco da teoria da refração da luz

Quando um raio de luz tenta atravessar de um meio material A para outro material B, é bem provável que sofra reflexão e refração ao mesmo tempo. Assim parte da luz reflete, voltando para o meio original, e parte da luz refrata, atravessando para o outro meio.

miragem_01

1 = raio incidente, 2 = raio refletido, 3 = raio refratado, N = direção normal à superfície que separa
os meios A e B.

 

O raio de luz que reflete forma com a direção normal N o mesmo ângulo feito entre o raio incidente e a mesma direção normal (r = i). E mantém a velocidade de propagação uma vez que volta para o meio de origem.

Mas o raio de luz que refrata costuma mudar de velocidade. É que cada meio, mesmo transparente, oferece certa "dificuldade" à propagação da luz. Em geral, meios mais densos dificultam a passagem da luz.

Essa "dificuldade" à propagação luminosa é chamada em Física de refringência do meio e é medida pelo índice de refração absoluto do meio n definido por

miragem_indice-de-refracao

onde c = 300 ooo km/s (aproximadamente) é a velocidade da luz no vácuo e v é a velocidade da luz no meio cuja refringência estamos quantificando.

Salvo se o raio de luz estiver se propagando numa direção perpendicular (ou normal) à superfície de separação dos meios, junto com a mudança de velocidade, sofrerá também desvio angular, ou seja, mudança na direção de propagação.

A segunda lei da refração, também conhecida como Lei de Snell-Descartes, nos garante que o raio de luz pode tanto se aproximar da direção normal (r' < i) quanto dela se afastar (r' > i). Tudo vai depender dos dois meios materiais envolvidos na refração e seus respectivos índices de refração.

Sem entrar em detalhes dessa importante lei da Óptica Geométrica e indo direto para as suas consequências práticas, a coisa funciona assim:

  • Se a luz vai do meio menos para o meio mais refringente, aproxima-se da normal (r' < i).
  • Se a luz vai do meio mais para o meio menos refringente, afasta-se da normal (r' > i).

A imagem abaixo ilustra a ideia.

miragem_aprox_afast_normal

 

Se o raio de luz estiver indo do meio mais para o menos refringente, situação em que a sua velocidade aumenta na refração e o raio refratado tende a se afastar cada vez mais da normal, poderá chegar a uma situação em que a porção refratada saia rasante, "lambendo" a superfície de separação dos dois meios.

miragem_limitel

Aumentando i, o raio refratado se afasta cada vez mais da normal até que sai rasante quando i = L.

 

No caso da refração rasante, o ângulo de incidência é chamado de ângulo limite L. Repare que ainda temos refração ocorrendo junto com reflexão. Mas, se aumentarmos mais um pouquinho o valor do ângulo de incidência i tal que ele supere o valor limite (i > L), o raio não mais refrata e sofre apenas reflexão que, por isso mesmo, é chamada de Reflexão Total.

miragem_reflexao-total

Para i > L a refração "desaparece". Ocorre Reflexão Total.

 

Esse é o princípio de funcionamento das fibras ópticas que, refletindo o raio de luz no seu núcleo, faz com que ele fique confinado, sendo "canalizado" de uma ponta até a outra da fibra. Confira post sobre esse tema, ainda na plataforma antiga do blog.

Agora atente para a seguinte situação: imagine que temos um meio material com índice de refração variável continuamente, decrescendo gradativamente. Na prática é como se tivéssemos muitas camadas de materiais de diferentes índices de refração. Um raio de luz, nesse caso, sofrerá sucessivas refrações, afastando-se da normal em cada uma delas, até que em certo momento atingirá o ângulo limite L. Daí por diante, sofrerá Reflexão Total, ou seja, não refrata mais.

Ilustro essa ideia, fundamental para entendermos as miragens, na figura a seguir onde, para simplificar, imaginei apenas 5 camadas de materiais transparentes justapostos com índice de refração absoluto n crescente da camada 5 para a camada 1. Mas na prática podemos ter muto mais camadas. A rigor, se o índice de refração variar continuamente, é como se tivéssemos infinitas camadas.

miragem_refracoes_camadas_n

 

Observações:

1) Por simplificação, na imagem acima, desenhei apenas os raios refratados em cada etapa. São eles, nesse ponto do raciocínio, que quero destacar. Mas lembre-se de que reflexão e refração são simultâneas abaixo do ângulo limite (i < L). Os raios refletidos, em cada camada, foram propositalmente omitidos.

2) É muito importante notar que, a cada mudança de meio (camada), o raio de luz refratado vai se afastando gradativamente da normal. Dessa forma, quando atinge a próxima superfície de separação com a outra camada, tem ângulo de incidência i  maior e, portanto, mais perto do ângulo limite L. Logo, a cada refração o raio vai incidindo na próxima camada com ângulo de incidência i cada vez mais perto do limite L. E, assim que o raio incidente tiver inclinação que supere o ângulo limite L, haverá apenas reflexão, ou seja, Reflexão Total. O raio, que já vinha se curvando, não segue adiante. Ele volta refletido, integralmente.

3) Com cinco camadas notamos desvios discretos. Mas, imagine como seria se o índice de refração variasse continuamente. Como já disse acima e reafirmo, seria como termos infinitas camadas. Nesse caso, o raio de luz faria uma curva suave, sem os sobressaltos ao passar de uma camada para outra como mostrado na ilustração acima. E é isso mesmo que você está pensando: o índice de refração variável continuamente "curva" suavemente o raio de luz!

Tudo entendido até aqui?

 

O que são as miragens

Miragens são fenômenos ópticos que provocam espelhamento, ou seja, a formação de imagens revertidas, como nos espelhos planos. Elas ocorrem quando a luz sofre Reflexão Total ao tentar atravessar de camadas de ar mais frio para outras de ar mais quente. O ar mais frio, mais denso, tem índice de refração maior do que o ar mais quente, menos denso. O raio, atravessando sucessivas camadas de ar em diferentes temperaturas e, portanto, diferentes densidades, faz uma curva por conta da variação do índice de refração, até atingir o ângulo limite L do dioptro quando, então volta refletido integralmente como explicado acima.

Há dois tipos de miragens:

  1. Miragem inferior
  2. Miragem superior.

As miragens inferiores são mais comuns em regiões tropicais, de clima quente. As superiores são típicas de regiões de latitude alta e clima frio.

1 – Miragem inferior

Aposto que você já presenciou uma miragem inferior quando, viajando de carro, avistou o que parecia ser uma poça d'água adiante, sobre o asfalto quente. Mas, ao chegar ao local onde deveria existir um espelho d'água, incrivelmente a água sumiu e você constatou que o asfalto estava seco! Olhando novamente para frente, a poça d'água reapareceu mais adiante! Não foi? E, incrivelmente, sempre que o carro alcançava o local onde o piso asfáltico deveria estar molhado, a suposta água sumia e reaparecia novamente mais adiante. Lembrou do fenômeno? Ele é muito comum no Brasil onde temos dias de temperaturas bastante altas.

Nesse caso, o asfalto negro, bom absorvedor de energia solar, sofre aquecimento e passa a irradiar calor, aquecendo de forma eficiente a camada de ar logo acima da superfície asfáltica. Esse ar quente, menos denso, tem índice de refração menor. Mas, quanto mais longe do asfalto, menor a temperatura do ar. Logo, quando mais alta a camada, mais denso o ar nela contido e, portanto, mais refringente. Assim teremos, logo acima do asfalto, infinitas camadas de ar com índice de refração variável gradativamente, o que faz a luz curvar-se, como já foi explicado.

Imagine, então, um raio de luz proveniente de um objeto qualquer (o topo de uma árvore, por exemplo). Ao tentar passar através das sucessivas camadas de ar sobre o asfalto, vai se curvando cada vez mais até sofrer Reflexão Total, retornando para cima e atingindo o olho de um observador.

miragem_asfalto

O ar "quente", menos denso e menos refringente, está na camada inferior. Quanto mais para cima,
o ar vai ficando mais frio, torna-se mais denso e, portanto, mais refringente.
A figura, propositalmente, está fora de escala.

Para o observador, a camada de ar mais quente funciona como um espelho plano que conjuga uma imagem revertida da árvore. O cérebro, sempre "espertinho" e querendo saber de tudo, sem ter como avaliar os índices de refração das sucessivas camadas de ar, sem saber direito o que está de fato acontecendo, vai pelo "caminho mais fácil": "imagina" que a reflexão foi feita por uma poça d'água no asfalto entendendo que a luz viajou em linha reta! Avaliação errada é suficiente para criar a sensação de uma lâmina refletora d'água, ou seja, de piso molhado!

O efeito é bem evidente para determinado ângulo de observação. Assim, basta o carro andar para a "poça d'água" desaparecer. Mas, olhando adiante no piso asfáltico, outros pontos, para o mesmo ângulo de visada, provocarão mesmo efeito. Assim, se observador estiver andando de carro, terá a sensação de que a poça d'água sempre avança e vai mudando de lugar, como se fugisse do carro. Não é exatamente o que você já presenciou?

A fotografia abaixo mostra o fenômeno. Note como parece que a pista está molhada. Dá para ver imagens invertidas dos carros e de um pouco da paisagem local.

miragem_asfalto_foto

Miragem inferior no asfalto aquecido. Fonte: wikipedia.

 

Esse tipo de miragem também acontece no deserto. E, quando o observador caminha em direção à suposta água, ela desaparece e reaparece mais adiante. É comum esse efeito ser popularmente associado à alucinações causadas pela alta temperatura local que provoca desidratação e, supostamente, alteração da percepção das pessoas. Mas não é nada disso. É Física pura. É Reflexão Total, na veia!

2 – Miragem superior

Também conhecida como Fata Morgana, essa eu nunca vi ao vivo. Talvez você também a não tenha presenciado. É que ela ocorre em regiões mais afastadas do equador terrestre, longe do Brasil, onde o clima é frio e onde ocorrem inversões térmicas com camadas de ar mais frio e denso abaixo e ar mais quente e menos denso mais para cima.

Há muitos relatos desse tipo de miragem em alto mar. Nesse caso, a água fria ajuda a abaixar a temperatura da camada de ar em contato com ela. O ar mais frio, mais denso e mais refringente, fica perto da água. Mais acima, e cada vez mais longe da água, formam-se outras camadas de ar mais aquecidas, menos densas e menos refringentes. É a mesma ideia da miragem inferior, só que "de ponta-cabeça". A ilustração a seguir ajuda no entendimento do fenômeno.

miragem_mar

O ar "frio", mais denso e mais refringente, fica na camada inferior. Quanto mais para cima, o ar vai
ficando mais quente, tornando-se menos denso e, portanto, menos refringente.
A figura, propositalmente, está fora de escala.

 

Nesse caso, para o observador, a imagem de um barco, por exemplo, pode aparecer acima da água, como se estivesse flutuando no ar. É até possível, se o barco estiver além do horizonte, ou seja, não visível diretamente para o observador por conta da curvatura da Terra, que somente a sua imagem seja vista como se estivesse pairando acima da água. Nesse caso, o efeito é fantasmagórico porque aparece um barco "voando" sobre as águas e de ponta-cabeça sem que se veja o barco verdadeiro. Já imaginou o susto que se leva?

Uma imagem da própria superfície da água também pode aparecer logo acima da superfície do mar, criando a ilusão de uma "parede de água". Essa "parede" poderia, em tese, ter mascarado a presença do iceberg que se chocou com o Titanic, provocando o seu trágico naufrágio. Esse foi o mote da questão do ENEM. E a imagem original publicada pela fonte citada na questão está reproduzida logo abaixo para que você veja como é incrível o efeito de ilusão de uma "parede de água".

miragem_mar_APOD

Miragem provocando a sensação de uma "parede de água". Fonte: APOD/NASA. Crédito: Mila Zinkova.

Reflexão ou refração?

Diante do que foi exposto acima, em toda miragem acontecem sucessivas refrações até que o raio de luz sofra a derradeira Reflexão Total responsável pela formação da imagem revertida do objeto.

No meu entendimento, o ENEM deveria ter colocado uma alternativa contemplando os dois fenômenos, refração e reflexão. De fato, os dois são importantes na formação da miragem. Concorda?

Mas, como a Reflexão Total é que, de fato, "ilude" o cérebro e dá a sensação de uma imagem revertida, no meu entendimento, na falta de melhor opção, prevalece, para a formação da miragem, a Reflexão Total. Não podendo assinalar duas alternativas, cravei "d – reflexão", pensando na relevância da Reflexão Total. Essa foi a minha interpretação.

Sem querer (acredito na boa intenção da banca!), ao colocar refração numa alternativa e reflexão noutra, o enunciado criou uma "pegadinha". Mas uma prova séria não pode ter "pegadinha"! Pode? "Pegadinha" é desrespeito com os candidatos, especialmente os que mais estudaram, têm mais conhecimento e, portanto, maior profundidade no ataque às questões.

miragem_pegadinha_ENEM

 

Se pudesse existir uma alternativa a mais, eu proporia a "f", sem "pegadinha"…. digo, sem "armadilhas". A questão ficaria assim:

____________________________

"Será que uma miragem ajudou a afundar o Titanic? (…) O fenômeno ótico que, segundo os pesquisadores, provoca a Fata Morgana, é a

a) ressonância

b) refração

c) difração

d) reflexão

e) difusão

f) refração, que pode ou não ser acompanhada de reflexão total

"

____________________________

Diante de tudo isso, deixo uma sugestão para a banca: validar as duas respostas, "b" e "d". Acho mais justo com os candidatos!

E aí? Qual a sua opinião? Deixe o seu comentário. A resposta certa é "b" (a oficial) ou "d" (a melhor, ou menos pior, de todas)? Também pode ser a "f" que acabei de criar!


Para saber mais

Anglo Resolve ENEM  é um trabalho muito bem feito e bastante confiável dos meus amigos autores do Sistema Anglo de Ensino.  Eles também validam a resposta "d – reflexão", embora o ENEM oficialize "b – refração".

Dois vídeos bem bacanas que mostram a luz se curvando por conta do índice de refração variável do meios. Em ambos o mesmo experimento: laser atravessando uma camada de água com açúcar diluído e decantado. Vale a pena ver os dois!

Vídeo 1 – Do físico Amadeu Albino Jr, o "Mago da Física", caro colega "embaixador do CERN"

Vídeo 2 – Do não-físico (mas super talentoso dos experimentos e traquitanas) Iberê Thenório do canal "Manual do Mundo".


[Atualização – 22/dezembro/2015]

Quase dois meses depois e a banca do ENEM não deu sinal de vida. Acho que eles não vão responder.

Lamento a falta de interação entre a banca e os professores de ensino médio e de cursinho que, como eu, acharam essa questão da prova 2015 um tanto quanto problemática.

O diálogo é sempre saudável. A aproximação banca oficial/professores poderia ser sinônimo de crescimento para ambas as partes. Mas até aqui esperei sentado…

Fiz a minha parte. Mas não vou mais esperar manifestação oficial do ENEM. Nem sentado.

Papo encerrado!


 

Já publicado no Física na Veia!

 

Sobre o autor

Dulcidio Braz Jr é físico pelo IFGW/Unicamp onde atuou como estudante e pesquisador no DEQ – Departamento de Eletrônica Quântica no final dos anos 80. Mas foi só começar a lecionar física para perceber que seu caminho era o da educação. Atualmente, além de professor, é autor de material didático pelo Sistema Anglo de Ensino / Somos Educação e pela Editora Companhia da Escola. É pioneiro no Brasil no ensino de Relatividade, Quântica e Cosmologia para jovens estudantes do final do ensino médio e início do curso superior. E faz questão de dizer que, aqui no blog, é professor/aluno em tempo integral pois, enquanto ensina, também aprende.

Sobre o blog

"O Física na Veia! nasceu em 2004 para provar que a física não é um “bicho papão”. Muita gente adora física. Só que ainda não sabe disso porque trocou o conteúdo pelo medo. Se começar a entender, vai gostar. E concordar: a Física é pop! Pelo seu trabalho de divulgação científica, especialmente em física e astronomia, sempre tentando deixar assuntos árduos mais leves sem jamais perder o rigor conceitual, o Física na Veia! foi eleito por um júri internacional como o melhor weblog do mundo em língua portuguesa 2009/2010 pelo The BOBs – The Best of Blogs da alemã Deutsche Welle."